1 Homem, 1 moto, 1 Oceano…

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Frederico Rezende conta como foi a sua travessia de 24h32m, um testemunho emocionante e emocionado de um navegador que gosta de desafios.
“Tínhamos combinado encontrarmo-nos no hall do hotel às 2h45m para chegarmos ao Porto de Essaouira por volta das 3h00.
Fui-me deitar às 23h00 e nem sei como, mas consegui dormir quase até o despertador tocar. Ou seja até Às 2h00. Levantei-me e acabei de arrumar a mala com as coisas que não precisava de levar para a moto, para a deixar no quarto pois o António Gamas que regressava a casa de avião ia buscar a mala para a levar com ele.
Fui o primeiro a chegar ao hall. Não estava lá mais ninguém. Ter-me ia enganado na hora? Não. O pessoal começou a chegar.
A saída era às 4h00 mas ainda havia formalidades a cumprir e estávamos com algum receio que pudesse haver demoras. Ou seja; ainda tínhamos que dar saída relativamente à importação temporária da moto, fazer a transferência de titular da importação temporária do reboque que tínhamos levado connosco e alem disso ainda tínhamos que dar a saída dos passaportes de todo o pessoal que ia embarcar em direcção ao Funchal.
No entanto tudo correu bem. Mais uma vez os amigos marroquinos tiveram uma organização impecável. Estavam lá à hora combinada, o pessoal da Alfandega bem como o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, e a guarnição do navio da Marinha Marroquina para nos “tirar” do Porto de Essaouira.
Tínhamos imensas pessoas no cais para se despedirem de nós o que foi mais um enorme alento.

Efectivamente saímos à hora marcada. 4h00!
O navio marroquino acompanhou-nos durante uma hora. Sinceramente estava com algum receio de embater contra algum barco de pesca que não tivesse luz.
Quando sentimos que o navio marroquino nos estava a “prender” o andamento pedimos via VHF para nos “libertar” e assim foi. “Au revoir et merci”.
Como era noite, optei por fazer uma navegação mais lenta por precaução. No entanto comecei a aperceber-me que o mar estava algo “desarrumado”.
Desde logo me apercebi que não conseguiríamos manter a velocidade previsto no Plano de Navegação. Começava mal.
Começou a clarear por volta das 6h40m. Passado mais algum tempo fiz o primeiro abastecimento. Estava a fazer uma necessidade fisiológico e logo me apercebi de um “engraçadinho” a tirar umas fotografias.
Continuei a navegar até ao 2º reabastecimento e continuavam as condições de mar. Não conseguia atingir a velocidade preconizada.
No 3º reabastecimento começou o que viria a ser uma das maiores preocupações. A gasolina. Pelas milhas que já tinha feito e até aquela hora, comecei a fazer cálculos mentais para estimar o consumo e a gasolina que ainda havia a bordo do barco de reabastecimento. Estava na dúvida. A gasolina daria? Passei a fazer uma condução extremamente cuidadosa para que conseguisse poupar a maior quantidade de gasolina possível apesar das difíceis condições de mar que se estavam a verificar e que já eram bastante piores do que aquelas que tínhamos constatado ao longo da manhã.
Aquando do 4º reabastecimento disse-me o patrão mor do Clube Naval do Funchal que estava a ajudar a meter gasolina: “Se chegarmos à meia-noite ao Funchal a gasolina vai ser elas por elas”. Não lhe disse nada mas dissiparam-se para mim e por completo quaisquer dúvidas que eu tinha.
Solução 1-Poupar o mais possível de forma a chegar com a moto o mais perto do Funchal e tentar ultrapassar o meu anterior recorde de distância Oceânica que era de 260mn e a partir daí levar a moto a reboque do barco de segurança.
Solução 2-Pedir para o Funchal para enviar um barco com gasolina para ir ao nosso encontro onde estivéssemos. Caso não conseguíssemos abandonaria a moto naquele local.
Solução 3-Ir ao ponto de encontro com a lancha do Gil Freitas que deveria estar a 120mn do Funchal em prevenção e por uma questão de segurança. Nesta lancha estariam 100 litros de gasolina de reserva para a moto. E será que a gasolina lá estaria no barco? Será que a tinham tirado? Será que encontraríamos a lancha no meio do oceano?
Nunca na minha vida gostei tanto de ver os meus amigos que estavam à minha espera no ponto previamente combinado no meio do Atlântico Norte. Eram 18h40m. –“Gil. Tens a gasolina?” “Só tenho 100 litros”, respondeu-me o Gil. “Chega e sobra”.
As condições de mar muito adversas obrigaram a um tipo de condução na moto que provocou um consumo superior em cerca de 40% do previsto. Em condições normais sobraria 20% da Gasolina que tinha. Foram necessários 460 l para a minha moto chegar ao Funchal.
Depois de todo este problema se encontrar ultrapassado, quando começou a escurecer encontrava-me ainda a 90mn do Funchal. Comecei a ficar desanimado por ter que navegar noite dentro. Liguei novamente a luz da moto e coloquei outra luz na cabeça. Estava a ficar com frio. Não se via nada. É muito difícil navegar sem ver o caminho. O mar saltava de todo o lado. Cada vez tinha mais frio. Fui à procura do bote de apoio para pedir um blusão para vestir. Não havia. Afastei-me do bote. Senti perfeitamente que me estava a ir abaixo. Estava desanimado. Faltando 90mn e mesmo que conseguisse fazer 15 nós, precisaria pelo menos 6 horas para chegar ao Porto de Destino. Tarefa impossível naquelas condições. Pensei em desistir. Pensei em pedir a um tripulante do bote de apoio para vir guiar a moto. Dos 3 havia um que praticamente não dava acordo de si, o outro tinha adormecido e só sobrava o Ten Joaquim Barata da Silva que estava aos comandos do bote. Nada feito. OK. Vou deixar aqui a moto. Não vou conseguir porque não tenho mais forças. Ninguém pode levar a mal, pensei para mim próprio. De seguida pensei no que a minha filha Maria me tem dito ao longo dos anos; “Desistir nunca!”
Pensei para mim próprio. O que se passa comigo? Porque é que de repente me fui abaixo desta maneira? Antes o problema era a falta de gasolina, que agora está resolvido.


Não consigo mais! Vou à procura do bote para passar para lá e vou deixar aqui a moto. Que se lixe!
Encostei a moto ao bote para passar para lá e sem querer quando abri a boca disse, não; gritei: – “Desenrasquem-se. Quero um blusão senão não me consigo aguentar”
Após alguma hesitação consegui uma camisola. Serve (também em condições normais isto não deveria acontecer pois viajo sempre com uma camisola térmica, um fato completo, o colete que também aquece e um blusão que ponho ou tiro conforme tenho calor). O que fiz foi tirar o meu blusão e vestir a camisola e voltar a vestir o blusão. E para fechar o fecho, o tempo que demorou, porque a moto não parava quieta para acertar com uma coisa na outra e alem disso não via nada. Lá consegui.
Passado 10 minutos já me sentia confortável. Que bom que era não ter frio. Fui ao meu GPS verificar o ponto e a distancia ao Funchal. 81mn. Percebi então que estava a entrar em hipotermia. Precisava ainda de energia para o corpo. Chocolates! Boa ideia. “Oh do bote!” Onde será que eles andam? Já os vi. Enchi a boca com chocolates até não caber mais e voltei-me a afastar.
Ao fim de 15 minutos sentia-me em forma novamente. Estava outra vez cheio de força. Faltavam ainda 65 mn para o destino.
Julgo que não foi sorte. Foi treino físico que fiz durante um ano e depois dos dois anos anteriores ter feito outras duas travessias e os respectivos treinos, mas acima de tudo, tive capacidade de discernimento para me aperceber exactamente o que se estava a passar e dominar o corpo com a mente, raciocinando.
Estimei chegar ao Funchal entre as 3h00 e as 4h00. Enganei-me. Cheguei às 4h32min do dia 19 de Junho de 2010. 24h32min depois de me ter despedido dos meus amigos em Essaouira.
Estava a lancha do Clube Naval do Funchal à minha espera com a minha mulher e a minha filha mais nova, alguns amigos, a televisão e alguns jornais. Sentia-me a pessoa mais feliz do Mundo.
Não entrei na Marina sem antes ligar o meu VHF e chamar pelo Centro de Comunicações da Marinha – o Cencomar Madeira – e agradecer a todo o pessoal de serviço naquela sala por todo o sacrifício que por mim tinham feita para garantir a segurança da Travessia acabada de realizar. Foram os primeiros de muitos a darem-me os parabéns.
Ao entrar na Marina do Funchal nem queria acreditar. Aquela hora da manhã havia imensas pessoas à minha espera a bater palmas.
Infelizmente não me consigo lembrar da cara de todos. No entanto a minha mulher, mais tarde, disse-me quem lá tinha estado.
Valeu a pena!
Até para o ano.
Frederico Rezende

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